Quem sou eu - Nasci em São Paulo, e adotei Curitiba desde criança, pois adoro esta cidade.

sexta-feira, 12 de agosto de 2016

O MEU AVÔ - parte 2

As  lembranças foram fluindo e não poderia deixar de  registrar um dos mais belos momentos da minha juventude. Minha homenagem continua...

Meu avô gostava muito de escrever. Escrevia e muito. Ensaios que lhe ajudavam nos seus trabalhos jurídicos.

Era advogado, jornalista e político, tendo sido vereador e deputado federal. Sua paixão era a do jornalista. 

Eram as suas crônicas diárias, publicadas no jornal local, Diário da Tarde,  que o entusiasmava. Vibrava ao lê-las! E o fazia religiosamente após o almoço, com um charuto na sua pequena boca.

Nesse dia a dia, durante a leitura da edição vespertina do jornal, quase sempre acontecia uma cena cômica: 
Meu avô abria as páginas do jornal,  aproximava-as de seus olhos já vestidos com aquelas grossas lentes, compenetrava-se nas leituras das reportagens e do seu próprio artigo. Esquecia do seu “havana” e dava um "furo" nas notícias com o braseiro do seu charuto.

Minha avó, vendo o perigo eminente, complementava esta cena, chamando atenção do meu avô para tomar cuidado:
- Barrozo! As cinzas vão manchar o seu terno, isso se ainda não fizer um furo na calça!

Acontecia o vaticínio e as cinzas caiam-lhe sobre as roupas e sob os reclames da minha avó, espanava-as com o dorso das mãos fazendo com que os resíduos daquele charuto grisava o linho da sua fatiota. 

Numa pequena sala íntima da casa, composta de um grande rádio, de cadeira de balanço e de uma poltrona de couro, acontecia as notícias. Era o momento do respeito e do silêncio. Somente ao rádio dava-se o direito de "falar" sempre com um chiado característico das ondas médias, vindas diretamente do Rio de Janeiro - Rádio Nacional. 

Após o jantar, religiosamente, meu avô sentava na poltrona e minha avó, na cadeira de balanço. Suas mãos trançavam os fios de lã, cujo desenrolar do novelo acompanhava os suspenses da rádio-novela. Já meu avô, lia um livro e pacientemente aguardava as notícias pelo "Reporter Esso" cujo slogam era "O Primeiro a Dar as Últimas Notícias" e "Testemunha Ocular da História". 
O Reporter Esso dava as notícias do Brasil e do mundo e era o mais importante noticiário brasileiro, começava pontualmente às 20 horas. 

Assim ficavam o casal a escutar o rádio com suas informações e novelas. 

Nós brincávamos ao pé da escada que saia no canto da pequena saleta, que levava aos quartos do sótão.Não nos atrevíamos soltar uma só risada ou emitir um único som. 

Num dos dias, meu avô chegou em casa quieto e cabisbaixo. Fez alguns comentários e trancou-se no escritório. Jantou sem trocar uma única palavra e foi à sala íntima. Sentou-se na poltrona e aproximou-se do radio como quisesse abraçá-lo.
Minha avó fez sinal para que não se fizesse nenhum barulho e nos afastássemos daquele lugar.
.
O rádio emitia um chiado que abafava a voz grave do locutor do Repórter Esso.  Era a notícia do suicídio do Presidente da República, Getúlio Vargas.

Não entendia o significado daquele acontecimento, mas percebi lágrimas nos olhos do meu avô e o balançar de cabeça como que negasse aquela tragédia.

A casa se fez silêncio!

Ele levantou-se e foi ao escritório. Debruçou-se sobre a máquina de escrever que emitia um triste tilintar e o batido surdo dos dedos nervosos nas teclas transformava as letras frias num desabafo, que com certeza, no dia seguinte, iriam engrandecer as páginas do Diário da Tarde. 

O alegre e o triste me fez refletir sobre aquela figura que iria me influenciar por toda a minha vida. A simplicidade de pessoa e seus sentimentos puros traziam o exemplo do homem e do avô.

Era um grande jornalista e como tal, ferino nas letras. Aí daquele que lhe era adverso, virava seu algoz.

Contava um dos meus tios, que ele,  indicado a uma função pública, sentiu falta da presença, na sua posse, daquele que lhe era credor da indicação. Não teve dúvidas em excruciá-lo na sua coluna do dia seguinte.
Quase perdeu o cargo, não fossem os amigos e as trocas de desculpas que amenizaram o fato. 

Citava Ruy Barbosa, de quem era seu ardoroso fã. 

Meu avô nasceu no Rio de Janeiro, era o que hoje seria chamado de assessor de imprensa do Presidente da Companhia de Navegação Lloyd Brasileiro. Diziam que quando lhe era dado oportunidade ia até o Senado visitando o gabinete do Senador Ruy Barbosa.

Destacado nas lides políticas da república, sua personalidade é traçada como a de homem público e de jornalista combatente e impetuoso, porém, verdadeiro defensor dos fracos perante os poderosos.

Paranaguá lhe chama e é a própria paixão pelo jornalismo que aceita ser o editor do Diário do Comércio de Paranaguá. Fica longe do centro do poder federal mas mantém a convicção de seus princípios.

Como homem dado à política fazia  seus discursos dando o norte à liberdade da imprensa, à democracia e à distribuição equitativa da riqueza nacional.    

Manoel Ribas, interventor no Paraná, o trouxe a Curitiba como Chefe de Polícia. Havia-lhe sido um crítico veemente. Posteriormente se tornariam grandes amigos.

Quando caminhava nas ruas do centro de Curitiba, trocava de calçada para evitar encontrar-se de frente com um adversário político. No entanto, saudava seus amigos tirando o chapéu e acenando vigorosamente.
Por outro lado, o encontro com um partidário, era motivo de ruidosa saudação, que por certo, terminaria num cafezinho, comportamento tradicional na cidade. 

Mal dei por mim, já percorria o corredor lateral daquela casa que dava acesso à cozinha. A porta aberta, fui saudado carinhosamente pela minha avó, que logo me ofereceu um cafezinho, enquanto dava os últimos arremates na limpeza do pós almoço.

Logo ela indicou-me o caminho da sala e falou  baixinho:
- Vai ter com seu avô, ele vai ficar feliz com a sua visita. Está um pouco mais debilitado pela doença.

Entrei na sala, as janelas semifechadas deixavam o ambiente escurecido. Meu avô estava sentado na poltrona de couro, as pernas cobertas com um leve cobertor, rosto pendente a um cochilo, tiravam-lhe a feição do grande homem que era.

Sorrio-me com os olhos e falou-me carinhosamente:

- "Meu neto, senta aqui ao meu lado, pois temos muito a conversar! Você está iniciando a sua vida, passou no concurso do Banco, e este é o seu primeiro emprego. Meus parabéns. Você não imagina como estou orgulhoso de você e muito feliz. Sei que seus caminhos serão traçados da melhor forma possível".
E continuou, após uma pausa como se fosse para recobrar suas forças:

- "Agora vai poder comprar os remédios para mim. Eu os tomo muito. Falou-me do Instituto dos Bancários, o IAPB (que depois foi sucedido pelo INSS) que havia uma farmácia cujos medicamentos eram sempre vendidos abaixo dos preços do mercado".

Ora falava-me sobre o sistema bancário, ora dizia-me da política paranaense, dos seus tempos, do jornal e de seus escritos. Informava da dificuldade de escrevê-los.
Olhava-me e sorria o sorriso dos mestres.

Eu não tirava os meus olhos dos seus e como um discípulo abnegado, escutava a cada frase que ele pronunciava.
Enchia-me de orgulho!

Quando parava suas falas, meus pensamentos fugiam ao passado, as imagens iam se sobrepondo.

Estava diante daquele grande homem e que naquele instante acolhia um rapaz sonhador, que imaginava percorrer tantos caminhos, tantas aventuras!

Continuava a olhar aquele velhinho com ternura, respeito e admiração.

Havia caído a barreira do tempo!

Saí daquela casa leve, como que se pisasse em nuvens. Desci as escadas e deixei o navio de piratas para traz do pequeno portão.

Uma nova vida abria-se pela frente.
Comecei o meu trabalho. Pena que não deu tempo para comprar os remédios...
Dez dias depois, ele viria a falecer!
.
Ficaram minhas lembranças...

O MEU AVÔ


Era um dia de janeiro, não de qualquer ano, mas de um tempo todo especial. Encaminhei-me para avenida, que antes era uma rua, larga, calma e arborizada. Tinha o cheiro de um bairro gostoso.

Encontrava-me diante de uma casa, com traços de uma arquitetura dos anos 40, onde desenhava uma pequena varanda, sob um arco mesclado de tijolos à vista. No telhado, as telhas já não mais vermelhas, desbotadas pelo tempo, e dali surgia uma janela, no formato de uma capela, que denunciava a presença de um sótão habitável.   

Da calçada, parecia que ela estava numa colina intransponível, não fosse o pequeno portão de ferro, que se abria a uma velha escada de cimento pintada de vermelho.

Era a casa do meu avô!

Fora chamado a seu pedido. Uma ligação telefônica,  havia percorrido uma dezena de interlocutores, para ali me levarem.
Não sabia o porquê daquele chamado. Para mim soava estranho e tinha até um aspecto solene.
Mas a curiosidade e a ansiedade faziam bater mais  forte o meu coração.
Antes de iniciar a subida por aqueles degraus, senti uma sensação de que estava frente a frente com o presente e o passado.

Estava me vendo criança rolando pelo gramado e me atirando às aventuras de pirata, naquele navio, que era a varanda sobre a garagem. Dali via a imensidão dos mares e dos tesouros guardados na minha imaginação.
Sem mesmo hesitar deixei-me mergulhar nas lembranças da infância e fui percorrendo os tempos de férias vividas naquela casa.
Às vezes tornava-se um castelo de reis, rainhas e cavaleiros, vividos com primos e primas que surgiam nas tradicionais reuniões da família.

Era tanta brincadeira que ao findar do dia desmaiava de cansaço, não antes de um refrescante um banho de verão seguido de um lanche de pão - o pão d'água quentinho untado de manteiga colonial, e café com leite. Só em Curitiba existia aquele tipo de pão!

Por outras vezes, aquela moradia virava uma fortaleza  com  canhões construídos com galhos de árvores espreitados à rua.
Embalava-me nas delícias do passado.
Das tardes e noites, eu só conhecia as mais puras e criativas diversões. 

Uma buzinada me trouxe a realidade e empurrou-me ao primeiro degrau.

Queria imaginar o conteúdo da conversa....

Meu avô não era uma pessoa sisuda, pelo contrário, sua feição era tranquila, de homem de bem com a vida.  Seu rosto redondo, com boca pequena se perdia entre suas grandes bochechas. Seus olhos sempre estavam por trás de uns óculos com lentes bem grossas.
Vestia-se sempre com terno claro, no verão o de linho e no inverno de casimira ou de lã. O sapato marrom acompanhava-o nas suas passadas.  
Sua voz era calma e falava pausadamente, poucas vezes o vi perdendo a paciência.  Nem tampouco aos gritos.

Com gesto carinhoso afagava minha cabeça e repetia este gesto com todos os seus netos. Não era de puxar conversa conosco.
Nós olhávamos aquela figura com respeito e admiração!

Inteligente e dado às leituras costumava tecer longos comentários sobre elas. Lia os compêndios jurídicos, pois era advogado. Procurava, também,  os livros de análise sociológica e fazia comparações com a vida de então.

Lembro-me, quando brincava numa pequena sala, ouvia-o falando sobre alguns livros que tinha lido. Numa das vezes, comentava com um de seus filhos, meu tio Ruy,  sobre o sertanejo nordestino. Falou da atrocidade da guerra, da fome, das crianças morrendo e da pobreza daqueles que moravam na região de caatinga. Fiquei muito impressionado com aqueles  detalhes que iriam ficar para sempre na minha lembrança.
Mais tarde descobri que o livro, motivo de seu comentário, era o clássico da literatura brasileira:  “Os Sertões” de Euclides da Cunha. 

Deixo ao lado as palavras e perco-me na saudade do meu avô, e como compromisso, prometo a mim mesmo, que amanhã, continuarei os meus devaneios e a minha homenagem ao meu avô Roberto Barrozo.