Meu avô gostava muito de escrever. Escrevia e muito. Ensaios que lhe ajudavam nos seus trabalhos jurídicos.
Era advogado, jornalista e político, tendo sido vereador e deputado federal. Sua paixão era a do jornalista.
Eram as suas crônicas
diárias, publicadas no jornal local, Diário da Tarde, que o entusiasmava. Vibrava ao lê-las! E o
fazia religiosamente após o almoço, com um charuto na sua pequena boca.
Nesse dia a dia, durante a
leitura da edição vespertina do jornal, quase sempre acontecia uma cena cômica:
Meu avô abria as páginas do
jornal, aproximava-as de seus olhos já
vestidos com aquelas grossas lentes, compenetrava-se nas leituras das
reportagens e do seu próprio artigo. Esquecia do seu “havana” e dava um "furo" nas
notícias com o braseiro do seu charuto.
Minha avó, vendo o perigo
eminente, complementava esta cena, chamando atenção do meu avô para tomar cuidado:
- Barrozo! As cinzas vão manchar o
seu terno, isso se ainda não fizer um furo na calça!
Acontecia o vaticínio e as
cinzas caiam-lhe sobre as roupas e sob os reclames da minha avó, espanava-as com o dorso das mãos fazendo com que os resíduos daquele charuto grisava o linho da sua fatiota.
Numa pequena sala íntima
da casa, composta de um grande rádio, de cadeira de balanço e de uma poltrona
de couro, acontecia as notícias. Era o momento do respeito e do silêncio. Somente ao rádio dava-se o direito de "falar" sempre com um chiado característico das ondas médias, vindas diretamente do Rio de Janeiro - Rádio Nacional.
Após o jantar,
religiosamente, meu avô sentava na poltrona e minha avó, na cadeira de balanço. Suas mãos trançavam os fios de lã, cujo desenrolar do novelo acompanhava os suspenses da rádio-novela. Já meu avô, lia um livro e pacientemente aguardava as notícias pelo "Reporter Esso" cujo slogam era "O Primeiro a Dar as Últimas Notícias" e "Testemunha Ocular da História".
O Reporter Esso dava as notícias do Brasil e do mundo e era o mais importante noticiário brasileiro, começava pontualmente às 20 horas.
Assim ficavam o casal a escutar o rádio com suas informações e novelas.
Nós brincávamos ao pé da escada que saia no canto da pequena saleta, que levava aos quartos do sótão.Não nos atrevíamos soltar uma só risada ou emitir um único som.
Num dos dias, meu avô chegou
em casa quieto e cabisbaixo. Fez alguns comentários e trancou-se no escritório.
Jantou sem trocar uma única palavra e foi à sala íntima. Sentou-se na poltrona
e aproximou-se do radio como quisesse abraçá-lo.
Minha avó fez sinal para que
não se fizesse nenhum barulho e nos afastássemos daquele lugar.
.
O rádio emitia um chiado que
abafava a voz grave do locutor do Repórter Esso. Era a notícia do suicídio do Presidente da
República, Getúlio Vargas.
Não entendia o significado
daquele acontecimento, mas percebi lágrimas nos olhos do meu avô e o balançar
de cabeça como que negasse aquela tragédia.
A casa se fez silêncio!
Ele levantou-se e foi ao
escritório. Debruçou-se sobre a máquina de escrever que emitia um triste
tilintar e o batido surdo dos dedos nervosos nas teclas transformava as letras frias num desabafo, que com certeza, no dia seguinte, iriam engrandecer as páginas do Diário da Tarde.
O alegre e o triste me fez
refletir sobre aquela figura que iria me influenciar por toda a minha vida. A
simplicidade de pessoa e seus sentimentos puros traziam o exemplo do homem e do
avô.
Era um grande jornalista e
como tal, ferino nas letras. Aí daquele que lhe era adverso, virava seu algoz.
Contava um dos meus tios, que ele, indicado a uma função pública, sentiu falta da presença, na sua posse,
daquele que lhe era credor da indicação. Não teve dúvidas em excruciá-lo na sua
coluna do dia seguinte.
Quase perdeu o cargo, não
fossem os amigos e as trocas de desculpas que amenizaram o fato.
Citava Ruy Barbosa, de quem
era seu ardoroso fã.
Meu avô nasceu no Rio de
Janeiro, era o que hoje seria chamado de assessor de imprensa do Presidente da
Companhia de Navegação Lloyd Brasileiro. Diziam que quando lhe era dado
oportunidade ia até o Senado visitando o gabinete do Senador Ruy Barbosa.
Destacado nas lides
políticas da república, sua personalidade é traçada como a de homem público e de jornalista combatente e impetuoso, porém, verdadeiro defensor dos fracos perante os
poderosos.
Paranaguá lhe chama e é a
própria paixão pelo jornalismo que aceita ser o editor do Diário do Comércio de
Paranaguá. Fica longe do centro do poder
federal mas mantém a convicção de seus princípios.
Como homem dado à política
fazia seus discursos dando o norte à liberdade da imprensa, à democracia e à
distribuição equitativa da riqueza nacional.
Manoel Ribas, interventor no
Paraná, o trouxe a Curitiba como Chefe de Polícia. Havia-lhe sido um crítico
veemente. Posteriormente se tornariam grandes amigos.
Quando caminhava nas ruas do
centro de Curitiba, trocava de calçada para evitar encontrar-se de
frente com um adversário político. No entanto, saudava seus amigos tirando o
chapéu e acenando vigorosamente.
Por
outro lado, o encontro com um partidário, era motivo de ruidosa saudação, que
por certo, terminaria num cafezinho, comportamento tradicional na cidade.
Mal dei por mim, já
percorria o corredor lateral daquela casa que dava acesso à cozinha. A porta
aberta, fui saudado carinhosamente pela minha avó, que logo me ofereceu um
cafezinho, enquanto dava os últimos arremates na limpeza do pós almoço.
Logo ela indicou-me o
caminho da sala e falou baixinho:
- Vai ter com seu avô, ele
vai ficar feliz com a sua visita. Está um pouco mais debilitado pela doença.
Entrei na sala, as janelas semifechadas
deixavam o ambiente escurecido. Meu avô estava sentado na poltrona de couro, as
pernas cobertas com um leve cobertor, rosto pendente a um cochilo, tiravam-lhe
a feição do grande homem que era.
Sorrio-me com os olhos e
falou-me carinhosamente:
- "Meu neto, senta aqui ao
meu lado, pois temos muito a conversar! Você está iniciando a sua vida, passou
no concurso do Banco, e este é o seu primeiro emprego. Meus parabéns. Você não
imagina como estou orgulhoso de você e muito feliz. Sei que seus caminhos serão
traçados da melhor forma possível".
E continuou, após uma pausa como se fosse para recobrar suas forças:
- "Agora vai poder comprar os remédios para mim. Eu os tomo muito. Falou-me do
Instituto dos Bancários, o IAPB (que depois foi sucedido pelo INSS) que havia uma
farmácia cujos medicamentos eram sempre vendidos abaixo dos preços do mercado".
Ora falava-me sobre o
sistema bancário, ora dizia-me da política paranaense, dos seus tempos, do jornal e de seus escritos. Informava da dificuldade de escrevê-los.
Olhava-me e sorria o sorriso
dos mestres.
Eu não tirava os meus olhos
dos seus e como um discípulo abnegado, escutava a cada frase que ele
pronunciava.
Enchia-me de orgulho!
Quando parava suas falas,
meus pensamentos fugiam ao passado, as imagens iam se sobrepondo.
Estava diante daquele grande
homem e que naquele instante acolhia um rapaz sonhador, que imaginava percorrer
tantos caminhos, tantas aventuras!
Continuava a olhar aquele
velhinho com ternura, respeito e admiração.
Havia caído a barreira do
tempo!
Saí daquela casa leve, como
que se pisasse em nuvens. Desci as escadas e deixei o navio de piratas para
traz do pequeno portão.
Uma nova vida abria-se pela
frente.
Comecei o meu trabalho. Pena
que não deu tempo para comprar os remédios...
Dez dias depois, ele viria a
falecer!
.
Ficaram minhas lembranças...
Toda a descrição da casa.....me levou a recordações e belas lembranças da minha infância!
ResponderExcluirMuito lindo meu irmão!!!
como sempre seus escritos nos emocionam e nos alegram!!
Você herdou o dom da escrita....mas sua característica é única!!!
Deixo aqui meu carinho e um beijo no coração!
Sua irmã Eliana...
Te amo meu irmão!!