Estávamos
reunidos, no pequeno bar da esquina, final da tarde, ao som de um violão,
curtindo Elis, entre acordes da Maisa, do Tom e Vinícius. Era o “dolce far niente”
de um início de mais um final de semana primaveril. Troca de olhares, gestos
carinhosos, querendo anunciar um novo romance e o sonho do sonhar puro,
poético, do amanhã não sei fazendo o quê.
Entra, chorando forte e tremulo o
nosso amigo João. Em sua mão, um papel, marcado por manchas de sangue e
amassado, como um maço imprestável arremessado ao lixo.
Era contexto que ecoaria nos gritos
de dor por anos, no derramamento do sangue dos gentios e maculando tantas
famílias.
Entrega-me
e busco uma coragem de lá de dentro e começo a ler pausadamente a cada palavra:
“Escrevo
para que o tempo passe e a angústia diminua. Cada barulho é um sobressalto e
minhas lembranças são invadidas pelo terror.
É mais
um dia que se passa e há mais de uma semana que estamos escondidos, eu, o Carlos, meu irmão gêmeo e o Robson.
Até
ontem, Danilo nos trazia comida e água. Mas desde hora do almoço,
não mais apareceu.
Estou
com medo que algo tenha acontecido com ele.
Desde
daquela reunião do diretório estudantil, que estamos
sendo
seguidos. Danilo foi alertado e soube que outros companheiros foram presos e
torturados. E a partir daí, ele vem despistando e tomando muito cuidado para
nos trazer água e alguma coisa para comermos.
Temos
que ficar escondido e não vejo a hora de fugir, atravessar a fronteira e chegar
ao Chile.
Não
sei como fazer, mas estou apavorado!
Engraçado
estou começando a ficar com fome, com
sede e um mal pressentimento! Está escurecendo!
Opa,
escuto um movimento, gritos e um barulho...
É o Danilo que entra gritando, esfarrapado,
empurrado por uma corja de ... mas o que é isso...uma rajada de metralhadora o
derruba no chão. Carlos se levanta e é atingido... meu irmão, leva um tiro na
cabeça.......
Cho....
é o nos........”
A
noite se faz silêncio!
O
ambiente enche de choro e lágrimas e a dor envolve-nos, os corações gritam e o
papel, assinado em gotas de sangue, desaba no chão, como se acompanhasse o
corpo do irmão do João, tombado pelas balas calando os sonhos de um jovem
sonhador.
Aquela
carta como um testamento, havia surgido do nada na casa do João. Um único
documento da morte dos irmãos, cujos corpos jamais foram encontrados.
Terminou
a noite e desfez-se o sorriso delicioso da juventude.
Naquele
instante, encerrava o conto de fadas.
Os
anos dourados continuaram talvez, já não tão dourados. Havia um descompasso com
o desconhecido.
Este
foi o lado cruel de uma revolução que nasceu nos braços do povo contra os
comunistas que também estavam matando.
Foram
poucos ou foram muitos, mas a verdade é que acabaram roubando a alma dos
meninos-crianças que queriam sonhar os outros sonhos das quais as canções queriam
falar.
Talvez
não foi tão dramático quanto as mortes que aconteceram nos outros países sul-americanos.
Mas, a juventude
que viveu na década de 70 começou a crescer marcada pelo silêncio, alguns pela
dor e pelo medo. Isso as levou à alienação política.
Não
lhes foram permitidos mais reunirem-se para desenvolver as suas aptidões de liderança que
brotavam nos centros acadêmicos. Era no desenvolvimento da política estudantil que germinavam os grandes líderes políticos.
Um
crime foi cometido e tamanha foi a sua crueldade que destruiu gerações de
jovens, que hoje poderiam ser os vanguardistas de uma nova política
brasileira.
Tenho
a certeza de que a consequência maior deste atentado aos jovens foi a
manutenção dos atuais políticos, que manobraram o poder naquela época e hoje se
posam como heróis, desfrutaram e desfrutam das benesses e beberam do cálice do sangue de
todos os inocentes.
E
ainda hoje desfilam como poderosos e mantém-se no poder como se dele fossem
donos.
Um
reinado ditatorial sem alternância de novos pensadores!