Quem sou eu - Nasci em São Paulo, e adotei Curitiba desde criança, pois adoro esta cidade.

quinta-feira, 14 de julho de 2016

Os Anos Dourados II

Estávamos reunidos, no pequeno bar da esquina, final da tarde, ao som de um violão, curtindo Elis, entre acordes da Maisa, do Tom e Vinícius. Era o “dolce far niente” de um início de mais um final de semana primaveril. Troca de olhares, gestos carinhosos, querendo anunciar um novo romance e o sonho do sonhar puro, poético, do amanhã não sei fazendo o quê.
Entra, chorando forte e tremulo o nosso amigo João. Em sua mão, um papel, marcado por manchas de sangue e amassado, como um maço imprestável arremessado ao lixo.
Era contexto que ecoaria nos gritos de dor por anos, no derramamento do sangue dos gentios e maculando tantas famílias. 

Entrega-me e busco uma coragem de lá de dentro e começo a ler pausadamente a cada palavra:

Escrevo para que o tempo passe e a angústia diminua. Cada barulho é um sobressalto e minhas lembranças são invadidas pelo terror.
 É mais um dia que se passa e há mais de uma semana que estamos escondidos, eu, o Carlos, meu irmão gêmeo e o Robson.
Até ontem, Danilo nos trazia comida e água. Mas desde hora do almoço, não mais apareceu.
Estou com medo que algo tenha acontecido com ele.
Desde daquela reunião do diretório estudantil, que estamos
sendo seguidos. Danilo foi alertado e soube que outros companheiros foram presos e torturados. E a partir daí, ele vem despistando e tomando muito cuidado para nos trazer água e alguma coisa para comermos.
Temos que ficar escondido e não vejo a hora de fugir, atravessar a fronteira e chegar ao Chile.
Não sei como fazer, mas estou apavorado!
Engraçado estou começando a ficar com fome,  com sede e um mal pressentimento! Está escurecendo!
Opa, escuto um movimento, gritos e um barulho...
É  o Danilo que entra gritando, esfarrapado, empurrado por uma corja de ... mas o que é isso...uma rajada de metralhadora o derruba no chão. Carlos se levanta e é atingido... meu irmão, leva um tiro na cabeça.......
Cho.... é o nos........”

A noite se faz silêncio!
O ambiente enche de choro e lágrimas e a dor envolve-nos, os corações gritam e o papel, assinado em gotas de sangue, desaba no chão, como se acompanhasse o corpo do irmão do João, tombado pelas balas calando os sonhos de um jovem sonhador. 
Aquela carta como um testamento, havia surgido do nada na casa do João. Um único documento da morte dos irmãos, cujos corpos jamais foram encontrados.
Terminou a noite e desfez-se o sorriso delicioso da juventude.
Naquele instante, encerrava o conto de fadas.
Os anos dourados continuaram talvez, já não tão dourados. Havia um descompasso com o desconhecido.

Este foi o lado cruel de uma revolução que nasceu nos braços do povo contra os comunistas que também estavam matando.
Foram poucos ou foram muitos, mas a verdade é que acabaram roubando a alma dos meninos-crianças que queriam sonhar os outros sonhos das quais as canções queriam falar.
Talvez não foi tão dramático quanto as mortes que aconteceram nos outros países sul-americanos. 
Mas, a juventude que viveu na década de 70 começou a crescer marcada pelo silêncio, alguns pela dor e pelo medo. Isso as levou à alienação política. 
Não lhes foram permitidos mais reunirem-se para desenvolver as suas aptidões de liderança que brotavam nos centros acadêmicos. Era no desenvolvimento da política estudantil que germinavam os grandes líderes políticos.

Um crime foi cometido e tamanha foi a sua crueldade que destruiu gerações de jovens, que hoje poderiam ser os vanguardistas de uma nova política brasileira.
Tenho a certeza de que a consequência maior deste atentado aos jovens foi a manutenção dos atuais políticos, que manobraram o poder naquela época e hoje se posam como heróis, desfrutaram e desfrutam das benesses e beberam do cálice do sangue de todos os inocentes.  
E ainda hoje desfilam como poderosos e mantém-se no poder como se dele fossem donos.

Um reinado ditatorial sem alternância de novos pensadores!


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