Quem sou eu - Nasci em São Paulo, e adotei Curitiba desde criança, pois adoro esta cidade.

segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

As duas Vidas de Severina

Severina era uma moça bonita, cor de jambo, bem tratada e mantinha sempre suas faces rosadas. Seus olhos grandes e esverdeados contrastavam com seu rosto de linhas retangulares. Seus lábios grossos davam uma graça quando sorria. Cabelos negros e compridos emolduravam o rosto.
Havia estudado até a 4ª. Série, graças ao empenho da professora Maria das Graças, que fez com que ela terminasse os estudos básicos. Isto porque a professora era casada com o delegado Justino, que ameaçava prender o pai da moça caso não deixasse ela estudar. Era óbvio que Justino agia assim por causa da pressão da esposa. 
Severina era recatada e sonhadora. Vivia em Cachoeira, um pequeno povoado do agreste pernambucano. Diferente de outras moças, Severina não plantava e nem colhia nas terras secas, áridas e já quase sem vida, e muito menos sabia ordenhar uma vaca. Ela se cuidava, por isso sua pele não sofria os maus tratos do sol esturricante.
Nas festas juninas, botava o vestido de chita, que era o mais bonito e feito por sua madrinha. Dançava graciosamente como ninguém por isso era sempre escolhida a rainha da festa. Não parava um só minuto de dançar, pois tanto em Caruaru quanto ali, os moços só queriam saber de dançar com ela.
Isso provocava ciúmes nas outras meninas. Certa vez, uma de suas amigas, ou melhor, conhecidas, avançou sobre ela e se não fosse o pessoal “do deixa disso”, a ciumenta teria estragado o seu vestido.
As moças sonhavam, não tanto quanto Severina, mas sonhavam principalmente sair da seca, da terra seca, poeirenta e sem vida, da pobreza e do feijão com farinha, quando tinha. Sempre que essas meninas podiam, iam a Caruaru, principalmente nos dias de feira, quando centenas de pessoas se amontoavam para comprar roupas, principalmente jeans. Aí elas desejavam achar um homem bonito, de outras bandas, que as levassem para longe dos seus pesadelos. 
A desgraça nunca vem sozinha. Na ânsia de arrumar um companheiro, se entregavam às promessas falsas. Logo descobriam que estavam “embarrigadas” e que o homem das promessas sumira. Quando a família descobria as colocava no olho da rua, e sem ter para onde ir, porque até a igreja lhes fechava as portas, iam para outra cidade, Caruaru ou Recife e caíam na vida.  
Severina já não! Sonhava, mas sabia o que queria, e o seu desejo era viver numa cidade grande. Nada de ficar dançando a Mazurca dos quilombolas ou trabalhando na loja de comércio do seu tio e padrinho. Não, ela quer ir longe, distante do sertão. Pensava em São Paulo ou até mesmo no tal Rio de Janeiro. Ela via nas revistas que chegavam na venda.
A moça tinha completado 21 anos e durante alguns meses foi guardando dinheiro e comprando roupas na feira da cidade vizinha. Pegou o ônibus, passou a noite, e em Recife entrou num avião (o padrinho tinha lhe dado as passagens). Assim iniciou sua aventura!
Ela escolheu o Rio de Janeiro, porque queria conhecer o mar, - “que coisa louca, quanta água, que cor de céu que nunca tinha visto”, isso falava Severina, estupefata só de ver as fotos.
...
Severina tremia mais que vara verde em dia de vento. Olhava tudo desconfiada e com muito receio.

A atendente da companhia aérea, percebendo o nervosismo da moça, acompanhou-a até a porta do avião. A aeromoça a conduziu até o seu assento, botou-lhe o cinto, o que a fez tremer mais ainda, e disse para ficar tranquila. 
Era muita gente e muitas poltronas, todas chiques. Uma porção de pessoas ocupando seus lugares, conversando e algumas até dormindo. A porta fechou. Um barulho ensurdecedor lá fora e o “bicho” vai se movimentando.  Uma voz vinda de algum alto-falante diz uma porção de coisas enquanto a aeromoça mostra o que fazer em caso de emergência. – “Virge, alguma coisa vai dar errado...!” .
Severina olha pela janela. O avião corre e num sacolejar sai do solo, e... - ”ele tá voando!” Ela começa a ficar meio zonza, as mãos suando e a pessoa do lado, um senhor de meia idade, lhe pergunta se é a primeira vez que está voando. A moça diz sim com a cabeça e a pessoa lhe diz para não ter medo.
Vem a aeromoça e lhe entrega uma bandeja com sanduiche, pergunta se quer suco ou refrigerante, ela pede um suco. Adormeceu...
Quando acordou o avião já estava descendo, e pode rapidamente ver a extensão do mar e a quantidade de prédios, ruas movimentadas... Realmente era uma grande cidade que se perdia no horizonte e nos morros. 
Desceu do avião atordoada, e na realidade não sabia direito aonde estava e para onde deveria ir.  Conforme algumas instruções da professora Maria das Graças, Severina deveria ir para casa de uns parentes dela. Tudo estava escrito direitinho e bem detalhado como chegaria nesta casa.
A recomendação era pegar o ônibus 2018, do aeroporto ao terminal, e fazer tudo de acordo com o roteiro.
Severina sentou-se na janela e ficou maravilhada com o cenário que estava vendo: avenidas cheias de carros, prédios, praia, até um porto, cheio de navios (que nunca tinha visto). Seus olhos arregalados não tiravam o olhar da janela.
Ao final da tarde chegou ao seu destino. Estava extasiada, nunca imaginou que poderia ver tantas coisas bonitas e cheias de surpresa. A casa dos parentes era simples e de poucos cômodos, mas muito maior do que a casa em que vivia, e mais bonita. A dona da casa, Iracema, uma senhora de meia idade, cabelos esbranquiçados, corpo avantajado, veio receber a moça. Iracema, era prima em segundo grau da professora, e logo foi fazendo uma porção de perguntas. Cema, como gostava de ser chamada, tinha 2 filhas, uma quase da idade de Severina e um rapaz, o filho mais velho.
Foi-lhe indicado o local onde ficaria, no quarto das moças. Dormiu e sonhou...
Assim foram passando os dias, ela se acostumando, conversando com as moças, descobrindo as entranhas daquela cidade maravilhosa. Desviando dos olhares dos rapazes, sentiu a necessidade de ter dinheiro e foi procurar emprego. As meninas da Iracema disseram que ela usasse um nome mais curto e fácil de guardar. Foi assim que passou a chamar-se Mina.
Começou procurando nas lojinhas do bairro, afinal tinha um pouco de experiência conquistada no comércio do tio.
Assim passaram-se dias e nada de emprego. Tentou outras opções, como balconista em supermercados, e nada.
Mina já estava ficando desanimada, quando numa conversa com Cema resolveu ser empregada doméstica. A Maria das Graças tinha lhe ensinado o básico da educação e agora sua prima estava ensinado o que ela tinha que fazer como uma empregada. Procurou uma agência de empregos, que após fazer um questionário sem fim, explicou seus deveres e benefícios. A moça gostou do que ouviu e ficou animada.
Após uma semana e nenhuma notícia de emprego, quando estava ficando desanimada, recebeu um recado da agência que tinham lhe arranjado um serviço.  
Era uma segunda-feira ensolarada, quente, e Mina foi feliz a caminho do primeiro emprego.
A casa em que trabalhava tinha 9 cômodos, ali moravam a dona Margareth, as crianças Leonardo e Isabela e o seu Luciano,  o que deixava Severina bastante ocupada. Quando chegava em casa não queria saber de outra coisa a não ser descansar.
Tudo estava indo bem, recebeu o primeiro salário – “nossa nunca tinha visto tanto dinheiro”! A dona Margareth perdeu o emprego e Severina também.
Não demorou muito, arranjou um novo emprego.  Nesse novo emprego, mal havia passado duas semanas começou a ser assediada pelo dono da casa, de tal forma que teve que se afastar do serviço.
E é a partir daí que Mina tudo começa a mudar.
Parecia sina, mas esse fato começava a se repetir mais e mais vezes nos outros empregos. Se não era o patrão, era o filho mais velho, o tio, e sabe lá...
Além de bonita, Mina tinha uma voz levemente grave, e gostava de cantar.  A moça resolveu aprender a tocar violão. Aos finais de semana, embaixo de uma árvore, buscando uma brisa para se refrescar do calor imenso, costumava cantar a tarde toda, ao som do violão que havia comprado numa casa de móveis e utensílios usados.
Um dia Mina viu na televisão uma entrevista com uma jovem que “virou” homem. Falava de uma moça que cortou o cabelo e passou a se vestir como homem, vivia feliz, ainda fazia sucesso e tinha fãs em todo o Brasil. 
Mina ficou impressionada, cortou o cabelo bem curto e todos os dias se olhava no espelho e adorava o seu novo visual. E a entrevista não saia da sua cabeça.
Comprou uma calça, uma camiseta, botou um tênis e saiu a noite vestida de homem, sem que ninguém da casa visse. Começou até olhar para algumas jovens, recebia troca de olhares e entre os homens era totalmente desapercebida(o).
Continuava a trabalhar como empregada e se por ventura se sentisse assediada falava com sua voz meio grossa e assim afastava qualquer um que lhe importunasse.  Trabalhando e saindo a noite daquele jeito, Mina gostava de seu novo tipo, e bastou mais uma reportagem para mudar de vez a sua vida. A matéria sobre os sucessos de Drag Kings nos Estados Unidos. São mulheres que se vestem e agem como homem, incorporando um personagem do sexo masculino.
Muito aplicada e dedicada, Mina começou a estudar cada história daquela reportagem e a cantar as mesmas músicas. No início foi difícil por causa do inglês, mas foi aprendendo, treinando e ensaiando o que não demorou muito para dominar as músicas.
A moça tinha conseguido guardar um bom dinheiro e resolveu ir morar sozinha. Antes disso conversou com a Regina, filha mais velha da Cema, que tinha uma boa cabeça e com certeza iria entender os planos da jovem.
Regina não só entendeu, como deu alguns conselhos e disse que tinha um amigo que poderia ajudá-la no seu projeto.
Mina não perdeu tempo, foi procurar o amigo que a aconselhou que ela fosse morar mais próximo do centro do Rio de janeiro. Mudou! Ele virou o seu produtor e empresário. Em menos de seis meses a jovem estava pronta e fez a sua primeira apresentação. O que já no primeiro dia causou uma sensação na noite carioca.
Apesar das feições, Mina adotou um nome artístico, Christian Hart, em homenagem a reportagem e porque só cantava músicas em inglês. Decidiu que faria um Drag King bem masculino, maquiando uma barba rente ao rosto, sem exageros na caracterização, deixando a camisa branca semiaberta graças aos seus pequenos seios, calças de um tecido brilhante, botas e cintos chamativos. Forçava sua voz no tom rouco, levemente grave, o que aumentava essa sensação.
Após a primeira noite, a casa noturna sempre cheia e muitos convites para novas apresentações.  
O sucesso a levou para São Paulo, muitos shows e dali ...